António Pereira Nobre (16/08/1867, Porto – 18/03/1900,
Lisboa) foi um escritor e poeta português.
Biografia de António Nobre
Era filho de uma família de comerciantes do Porto com terras
no Douro (essa paisagem da juventude, a que é preciso juntar a das praias do
litoral norte em que passava os Verões, virá a ser determinante no mundo da sua
obra).
Em 1888 inicia estudos de Direito em Coimbra e aí conhece
Alberto de Oliveira, com quem participa, em inícios de 1889, numa das revistas
fundadoras do que viria a ser o simbolismo* português — Boémia Nova (à qual se
contraporia Os Insubmissos, de outro grupo de estudantes, entre os quais
Eugénio de Castro).
A figura extravagante e dândi de António Nobre, que
recuperou elementos entretanto caídos em desuso do traje estudantil, que usava
o fez marroquino ou as grossas camisolas de lã dos poveiros, juntamente com a
fama de boémia, foram fatores dos seus chumbos em dois anos seguidos, levando-o
a Paris para, em outubro de 1890, se inscrever na Sorbona, no curso que não
conseguira fazer em Coimbra. Depois de alguns atrasos, devidos a problemas
familiares e financeiros na sequência da morte do pai, obtém a licenciatura em
Direito pela Sorbonne em 1893, apresentando-se ao concurso para o lugar
de cônsul, em que será aprovado.
A doença de António Nobre
No entanto, já doente, não virá nunca a ocupar o posto que
lhe foi atribuído, e os seus últimos anos de vida são uma quase incessante
peregrinação entre Lisboa, o Porto e a quinta do Seixo da sua infância, a Suíça
e a Madeira, em busca da saúde que a tuberculose ia minando cada vez mais.
Estas circunstâncias importam aqui a vários títulos: não
apenas para traçar um rapidíssimo escorço biográfico (que se encontrará com
todo o pormenor em Guilherme de Castilho), mas para frisar duas questões:
por um lado, se a paisagem fundadora da infância e da idade adulta é elemento
fulcral na obra do poeta do Só, é porque ela foi entretanto mediatizada
pela memória que a transfigurou em mito; e, por outro lado, a biografia de
Nobre mostra em si mesma como é redutora a leitura que, tomando o Só
como «o livro mais triste que há em Portugal» (verso final de «Memória», in Só),
o reduz ao biografismo do livro escrito pelo tuberculoso — que Nobre não era à
data da primeira edição, de 1892 (chez Léon Vanier, o editor parisiense
dos mais importantes simbolistas franceses).
Se à época o livro suscitou reações negativas, com raras exceções
- de que se salienta a defesa que dele fez Alberto de Oliveira e, se mais tarde
o neogarrettismo de que este amigo do poeta foi mentor o procurou erigir em
avatar do nacionalismo tradicionalista, a verdade é que tudo isso se situa num plano
exterior à literatura. Largamente preparado pelos poemas que dispersamente
Nobre vinha publicando desde os 15 anos [cf. Primeiros Versos (1882-1886)],
o Só apresentava de facto suficientes motivos de estranheza para os seus
contemporâneos; a sua temática aparentemente ingénua, recuperando vozes e
vivências do povo, ou a figura de um sujeito em primeira pessoa em torno do
qual tudo gira, num tom que à superfície parece de confessional saudosismo.
foram os aspetos mais notados e largamente parodiados nas reações à edição de
1892, embora tenham quase desaparecido quanto à de 1898, que o poeta preparou
com substanciais diferenças quanto à versão inicialmente dada à estampa.
A análise comparativa das duas edições mostra claramente.
aliás, o saber poético e a maturação de um autor; ao rigor e à mestria com que
desde sempre usou a versificação e o ritmo, Nobre acrescenta em 1898 uma
ordenação do livro em secções, construindo o percurso da vida de uma
personagem: às três primeiras, cada uma constituída por um só poema (o proémio
«Memória», «António» e «Lusitânia no Bairro Latino») seguem-se as outras
secções, com número variável de textos («Entre Douro e Minho», «Lua Cheia», «Lua
Quarto-Minguante», dezoito «Sonetos», «Elegias» e o longo díptico «Males de
Anto»).
«Memória»
«Memória» (que era na primeira edição um soneto e passa na edição
de 1898 a ser um poema em dezoito dísticos alexandrinos) abre o livro como um
prólogo programático, traçando uma ascendência mítica para o «menino» fadado
desde o berço para ser «um Príncipe» e um poeta, simbolicamente feito órfão e condenado
a uma infância sem fim em busca do seu lugar primeiro e da sua identidade; a
personagem é. desde logo, complexificada por em tal destino se sobreporem o
plano individual de «António » ou «Anto» (hipocorístico e nome truncado, mostrando
a ferida narcísica) e um plano coletivo, pelo qual o eu simboliza
Portugal e os portugueses, nesse tempo finissecular de crise a vários níveis. É
esta a clivagem que se mantém em todo o livro, através de diversos modos de
encenar a divisão interior de um sujeito e do tempo que ele representa; veja-se
isso, por exemplo, no diálogo entre dois textos e duas instâncias discursivas
em poemas como «António», «Os figos pretos» ou «Poentes de França», na
interpelação de si mesmo como um outro em vários poemas ou na criação de
interlocutores como «Georges» em «Lusitânia no Bairro Latino» ou o amigo em
«Carta a Manoel»; ou pense-se no processo, muito moderno para a época, de
incorporação do coloquialismo das falas ouvidas a outros (v. g., de Carlota e
diversas vozes populares em «Males de Anto»), ou da conservação dos erros de
ortografia (como na ladainha das lanchas em "Lusitânia no Bairro
Latino").
O sujeito, que parece à primeira vista egocêntrico, vai-se deste
modo transformando numa polifonia, no lugar em que se cruzam várias vezes que,
é certo, o constituem, mas o transcendem, até porque tem a vincada consciência
de ser um elo numa cadeia – a dos portugueses cumprindo um destino coletivo, sendo
os pescadores poveiros ou os minhotos em romaria uma espécie de rasto dos
descobridores de outrora, de um tempo glorioso que se perdeu no passado. Anto
carrega o peso de saber que esse tempo épico não volta mais, assumindo uma
consciência coletiva que o aproxima do herói; aliás, de entre os seus modelos
explícitos salienta-se o Camões de Os Lusíadas, entre referências mais
esparsas a diversas fontes (o romanceiro, Bernardim, Garrett, Antero, Júlio
Dinis, Shakespeare e Poe).
No plano mítico, o herói está entre o «Príncipe» ou «Infante»,
o pastor do bucolismo, o cavaleiro andante e o «menino», situando o duplo
paradigma da infância (para que nostalgicamente se volve o eu) e do
adulto hiperconsciente; ao mesmo tempo, isso permite falar também da memória
como elemento essencial, já que o paraíso é apenas evocado, em violento
contraste com a decetividade que caracteriza o presente, tempo por excelência negativo
ou. pelo menos, de nostalgia, como desde logo assinala a constância do tema do
exílio – os poemas são datados de Paris, terra em que Anto, o «Lusíada,
coitado», está entregue a si mesmo e à saudade. Um dos modos de tentar combatê-la
é a descrição sistemática e pormenorizada do passado perdido, pelo que o Só
está muito marcado pelos vários recursos retóricos do visualismo e da
presentificação; o espontaneísmo, a existir, é um efeito textual profundamente
radicado na própria expressão complexa de um sujeito que se procura ao
reconstituir o seu mundo sob o signo lunar que os títulos de duas secções
definem e muitíssimas marcas ajudam a disseminar no texto (desde logo, em
«Memória», pela nomeação do sujeito: «(...) e assim se criou um anjo, o Diabo,
o lua»).
Ao encerrar o livro, o díptico «Males de Anto» faz uma revisão
e uma síntese, combinando magistralmente o visionarismo e o intimismo que o
caracterizam: se a primeira secção, «A ares numa aldeia», glosa e desenvolve o
tema das «moléstias d'Alma», a segunda, «Meses depois, num cemitério», é um
final em pastiche do diálogo de Hamlet com o coveiro na peça de Shakespeare,
retomando todas as figuras protetoras antes enumeradas para terminar nos braços
acolhedores da «mãe de Anto» e de um «Deus» que evoca contextualmente o
anteriano «Palácio da Ventura» e é, como no poeta das Odes Modernas, uma
construção mental.
O Só de António Nobre
Se o Só deve destacar-se na obra de António Nobre,
ela ganha ainda mais força e coesão quando lemos os seus outros livros -
nomeadamente ao atentarmos em «Anrique», o herói sebástico e decetivo de «O Desejado»
(in Despedidas), ou ao determo-nos nos volumes da correspondência, em
que a mesma elegância de escrita, o mesmo humor, a mesma argúcia, o mesmo
domínio perfeito dos recursos da língua se tornam patentes.
À luz das relações que a crítica tem vindo a estabelecer entre Nobre, como entre Camilo Pessanha e outros poetas finisseculares, e os modernistas de Orpheu (sendo explícitas as referências em textos de Pessoa e de Sá-Carneiro), parece hoje indiscutível o lugar de António Nobre na poesia portuguesa moderna, que o mesmo é dizer na poesia portuguesa tout court.
(texto adaptado de Dicionário da Literatura Portuguesa, Álvaro Manuel Machado, Editorial Presença )
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